O poder do copo d'água
[Etnografando]
Nos dias mais quentes, “uma água, por favor”. Nos mais amenos, “não, obrigada”. Na fartura das cachoeiras, desdém: “pode ser, nem lembrava”. No deserto, quase obsessão: “por favor, eu imploro”. O copo d’água, tão constante em nossas vidas, parece oscilar entre valorizado e desmerecido, apesar de se manter sempre tão fundamental.
Na maioria das vezes, passa despercebida toda aquela mágica ao redor dele. Mas, há os que perguntarão se, com água até a metade, você o vê “metade cheio” ou “metade vazio”, e, com sua resposta, determinarão uma das características mais significativas da sua personalidade: “se você o diria metade cheio, é porque você é otimista; se o diria metade vazio, é porque é um pessimista”. Sem falar no poder que as pessoas atribuem ao aparentemente simples copo d’água: parece que cura dor, tristeza, nervosismo, raiva, excitação, histeria, ansiedade... Em qualquer um desses momentos é: “calma, toma um copo d’água”.
Existe, ainda, toda a onipresença e a democracia do referido. Casa, escola, trabalho, festa de aniversario, consultório médico, multinacional, órgão público, centro espírita, em todo canto tem; negro, branco, asiático, índio, jovem ou velho, rico, pobre, classe média, multimilionário, todo mundo pode e, na falta, qualquer um morre. Mais democrático ainda porque quem elege é você: bem gelado, natural, com gás?
Sem falar que, com o custo mínimo na natureza, contraria a lei da oferta e da procura. É anti-capitalista, e ainda incita um quase-socialismo quando faz dizer “mas um copo d’água não se nega a ninguém!”. No mais, é o mais arbitrário: é invariavelmente incolor, inodoro e insípido o tal líquido, e gosta quem quer. Mas alguém faz careta quando toma? É quase uma prova cabal de que a tal neutralidade pode até não agradar, mas, de fato, não desagrada.
Tão indivisível que é: um copo vazio não é nada. Não cura nada, não muda nada, não toca em ninguém. A água sem copo – ou similares - por sua vez, nem mata a sede de imediato, e escorrega, aborrece, engasga. Pense agora na flexibilidade desse símbolo. Copos existem muitos. E água, então, por toda parte. Troque o conteúdo de um para outro e só mudam os limites que seguram o líquido, não há qualquer perda de volume. Imagine que se cada copo fosse um pedacinho da terra ocupado por um individuo, a água dentro deles só poderia representar os mais evoluídos: flexibilidade, poder de adaptação a qualquer tipo de ambiente, sem perder um tantinho do todo que se é é definitivamente uma característica de poucos nesse planeta. E, ainda como a gente, é fundamentalmente singular, mas pode estar plural: forma um belo par com o eterno copo de vinho ou o descartável copinho de café.
Na escassez da guerra, sabemos que é artigo de luxo. Pode até virar arma de poder. Aliás, arma sim, como na briga de namorados – vide qualquer novela mexicana. Na sociedade, é passaporte para a integração aceitável: lavar o rosto, os dentes, as mãos sujas do trabalho, a maquiagem borrada na festa. E é cúmplice: cochilou no trabalho? Joga um pouquinho dele no rosto. E onde põe a dentadura? Se perdeu no acampamento de sobrevivência? Junto à agulha magnetizada faz-se uma bússola. Dá até para se esconder atrás dele para não precisar falar com alguém, ou tomar um gole enquanto respira e toma coragem para fazer uma pergunta indiscreta.
E se depois do pecado é refresco, na religião é purificação. A ciência usa-o como remédio: é a prescrição para cálculos renais, por exemplo. Na linguagem, é lócus de lição: “não faça tempestade em copo d’água”, evitando muitas vezes que um assunto ganhe repercussão maior que sua importância. Na teoria do caos, pode virar inundação e, no dia a dia, se fizer engasgar, por exemplo, capaz até de matar.
E, mesmo com tanto poder, é humilde. É tão humilde que se conforma em ser coadjuvante. Enquanto todos assistem à corrida de São Sivestre e torcem por um ou outro, diferentes a cada ano, o copo d’água é condição sine qua non: são 500 mil deles a cada competição! Nas canções, também já co-estrelou, como na famosa “Traga-me um copo d'água, tenho sede e essa sede pode me matar. Minha garganta pede um pouco d'água. E os meus olhos pedem teu olhar”. Ou Noel, que cantava sobre o botequim e não esqueceria dele “Seu garçom faça o favor de me trazer depressa uma boa média que não seja requentada, um pão bem quente com manteiga à beça, um guardanapo e um copo d'água bem gelada”.
É simples assim explicar a importância do copo d’água para as pessoas. E deve ser fascínio isso que ele exerce, ainda, em mim. Talvez por ser tão próximo, tão presente na minha vida. E eu não sou uma pessoa de intimidades. Aliás, se penso a quantos outros eu permito essa intimidade de encostar na minha boca, parar nos meus lábios, guardar minha respiração para eles e percorrer meu corpo inteiro... só aos poucos que, de fato, me fascinam. Mas vale lembrar que, faça chuva ou faça sol, da África ao pólo norte, na riqueza ou na pobreza, na saúde e na doença, quer queira, quer não, quem pode dizer "desta água não beberei"?
Na maioria das vezes, passa despercebida toda aquela mágica ao redor dele. Mas, há os que perguntarão se, com água até a metade, você o vê “metade cheio” ou “metade vazio”, e, com sua resposta, determinarão uma das características mais significativas da sua personalidade: “se você o diria metade cheio, é porque você é otimista; se o diria metade vazio, é porque é um pessimista”. Sem falar no poder que as pessoas atribuem ao aparentemente simples copo d’água: parece que cura dor, tristeza, nervosismo, raiva, excitação, histeria, ansiedade... Em qualquer um desses momentos é: “calma, toma um copo d’água”.
Existe, ainda, toda a onipresença e a democracia do referido. Casa, escola, trabalho, festa de aniversario, consultório médico, multinacional, órgão público, centro espírita, em todo canto tem; negro, branco, asiático, índio, jovem ou velho, rico, pobre, classe média, multimilionário, todo mundo pode e, na falta, qualquer um morre. Mais democrático ainda porque quem elege é você: bem gelado, natural, com gás?
Sem falar que, com o custo mínimo na natureza, contraria a lei da oferta e da procura. É anti-capitalista, e ainda incita um quase-socialismo quando faz dizer “mas um copo d’água não se nega a ninguém!”. No mais, é o mais arbitrário: é invariavelmente incolor, inodoro e insípido o tal líquido, e gosta quem quer. Mas alguém faz careta quando toma? É quase uma prova cabal de que a tal neutralidade pode até não agradar, mas, de fato, não desagrada.
Tão indivisível que é: um copo vazio não é nada. Não cura nada, não muda nada, não toca em ninguém. A água sem copo – ou similares - por sua vez, nem mata a sede de imediato, e escorrega, aborrece, engasga. Pense agora na flexibilidade desse símbolo. Copos existem muitos. E água, então, por toda parte. Troque o conteúdo de um para outro e só mudam os limites que seguram o líquido, não há qualquer perda de volume. Imagine que se cada copo fosse um pedacinho da terra ocupado por um individuo, a água dentro deles só poderia representar os mais evoluídos: flexibilidade, poder de adaptação a qualquer tipo de ambiente, sem perder um tantinho do todo que se é é definitivamente uma característica de poucos nesse planeta. E, ainda como a gente, é fundamentalmente singular, mas pode estar plural: forma um belo par com o eterno copo de vinho ou o descartável copinho de café.
Na escassez da guerra, sabemos que é artigo de luxo. Pode até virar arma de poder. Aliás, arma sim, como na briga de namorados – vide qualquer novela mexicana. Na sociedade, é passaporte para a integração aceitável: lavar o rosto, os dentes, as mãos sujas do trabalho, a maquiagem borrada na festa. E é cúmplice: cochilou no trabalho? Joga um pouquinho dele no rosto. E onde põe a dentadura? Se perdeu no acampamento de sobrevivência? Junto à agulha magnetizada faz-se uma bússola. Dá até para se esconder atrás dele para não precisar falar com alguém, ou tomar um gole enquanto respira e toma coragem para fazer uma pergunta indiscreta.
E se depois do pecado é refresco, na religião é purificação. A ciência usa-o como remédio: é a prescrição para cálculos renais, por exemplo. Na linguagem, é lócus de lição: “não faça tempestade em copo d’água”, evitando muitas vezes que um assunto ganhe repercussão maior que sua importância. Na teoria do caos, pode virar inundação e, no dia a dia, se fizer engasgar, por exemplo, capaz até de matar.
E, mesmo com tanto poder, é humilde. É tão humilde que se conforma em ser coadjuvante. Enquanto todos assistem à corrida de São Sivestre e torcem por um ou outro, diferentes a cada ano, o copo d’água é condição sine qua non: são 500 mil deles a cada competição! Nas canções, também já co-estrelou, como na famosa “Traga-me um copo d'água, tenho sede e essa sede pode me matar. Minha garganta pede um pouco d'água. E os meus olhos pedem teu olhar”. Ou Noel, que cantava sobre o botequim e não esqueceria dele “Seu garçom faça o favor de me trazer depressa uma boa média que não seja requentada, um pão bem quente com manteiga à beça, um guardanapo e um copo d'água bem gelada”.
É simples assim explicar a importância do copo d’água para as pessoas. E deve ser fascínio isso que ele exerce, ainda, em mim. Talvez por ser tão próximo, tão presente na minha vida. E eu não sou uma pessoa de intimidades. Aliás, se penso a quantos outros eu permito essa intimidade de encostar na minha boca, parar nos meus lábios, guardar minha respiração para eles e percorrer meu corpo inteiro... só aos poucos que, de fato, me fascinam. Mas vale lembrar que, faça chuva ou faça sol, da África ao pólo norte, na riqueza ou na pobreza, na saúde e na doença, quer queira, quer não, quem pode dizer "desta água não beberei"?
Rafa
2 comentários:
:D
Pretty sure I gonna miss you...
:)Uau!
Demais seu texto...a simplicidade das coisas vitais esquecidas, desmerecidas, ignoradas. Muitos copos d'água pra vc!
beijão!
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